Mucho Macho!

Como diria o Ary dos Santos:

"Entram guizos chocas e capotes
e mantilhas pretas
entram espadas chifres e derrotes
e alguns poetas
entram bravos cravos e dichotes
porque tudo o mais
são tretas."

Pois é...e depois entrou aqui o Éme, pela primeira vez na vida numa praça de touros!

Apesar de não me identificar minimamente com o espectáculo tauromáquico nem aceitar que se faça da tortura dos animais uma actividade recreativa, decidi aceitar a oferta de um bilhete para o dito evento! Instigado pela curiosidade e pela vontade de perceber o fenómeno por dentro, convidei um comparsa e lá nos metemos ao caminho.

A viagem até à praça de touros foi atribulada...como sempre...
A pessoa que me ofereceu o bilhete alertou-me para o rigor e pontualidade do evento..."se chegas atrasado não te deixam entrar...aquilo não é brincadeira" disse ele.
No entanto, com apenas 10 minutos para lá chegarmos, acabámos por apanhar todos os sinais vermelhos, estradas cortadas, tivemos de pôr gasolina a meio, dificuldade em estacionar, etc...resultado: com quase 40 minutos de atraso lá chegamos. O meu amigo teve ainda de comprar bilhete - "pois é chefe: é o último bilhete...isto a estas horas já se sabe" disse o velho da bilheteira, que acabou por cobrar 25€ por um bilhete que mais tarde reparámos ter escrito "20€"!!! OOOOlllllléééééée...a toirada começava ali...pelo menos para o meu amigo!

Ao entrarmos já a praça estava "à pinha"...lá nos infiltrámos para uns lugares disponíveis na penúltima fila...próximo da banda! Se rigor e a pontualidade não houve da nossa parte, muito menos da parte dos profissionais da arte tauromáquica, pois naquela altura estavam ainda a apresentar o Toiro "o nº 121, da ganadaria Pontes Dias, com 460 Kg, nascido no ano de 2001". As portas abriram-se, a besta lá saiu em fúria.."eehhh lá este é dos bravos, dizia por detrás de um bigode farfalhudo todo besuntado da gordura de uma "sande de córat" o "chefe" sentado ao meu lado direito! Do lado esquerdo um verdadeiro paradoxo: dois jovens apoiando o seu amigo forcado que iria defrontar o Minotauro benziam-se e vernaculavam simultaneamente!

"Tocá musicaaaa...Tocá musicaaaa" gritavam as pessoas para o chefe da banda..."Cóóóraaatos, Entremeadas, óólháá mine, traaamoço, tramoooço" gritava o vendedor ambulante que obrigava todos a levantarem-se para que ele pudesse penetrar nas filas (penetrar nas bichas soa mal) e vender as suas buchas quentinhas.

A fauna era diversa e representativa daquilo que por vezes se denomina de "machus portucalensis" ...lá estavam os bigodes à Tony, o fio de ouro com crucifixo, a proeminente unha do mindinho, o abotinado, o "fatreino" com sapato de verniz, as carecas camufladas com franja lateral, flatos sonantes e despreocupados, cigarro, pigarro, catarro, dentes pretos, dedos amarelos, pescoços cinzentos...Por outro lado, os cabeças de casal, católicos, de direita, que preservam os "valores tradicionais da família", acompanhados dos filhos nas suas camisas "sacoor" e sapato de vela...as esposas de cabeleira armada de laca "fiero",lencinho de seda ao pescoço, sentadas em almofadinha debruada a renda e com rosa de organza. A toirada é para todos! Um espectáculo estruturado em hierarquias rígidas na arena(o “inteligente”, ou director de corrida, depois os profissionais, os cabeças de cartaz) e no entanto tão flexível e polissémico nas bancadas!

A banda tocava o passo doble...
Ao nº 121, da ganadaria Pontes Dias, depois de lhe "despacharem a ferragem" (como dizia vibrando o "chefe" ao meu lado, sucedeu-se o 98 do ganadeiro Francisco Romão Tenório, com mais de 500 kg...Que mania esta de não se chamar os bois pelos nomes...121,...98...estamos na tropa ou quê? O animal para além de ser picado, de o cansarem, de o iludirem com um pano vermelho, de um grupo de pessoas se agarrarem às suas hastes e de ir parar ao talho no fim da brincadeira, é privado da sua individualidade...porque não "Afonso", "Tomás", "Álvaro"?

Entre o zumzum da assistência comentava-se a "entrada frontal, com meia paragem no cite e ferros finais em picanço" ou ainda "um belíssimo ferro comprido" merecendo ovação em pé da assistência. O Grupo de Forcados do Aposento da Moita pareceu estar bem...quer à "córnea", quer à "barbela".

O tempo passava, a fome apertava era já noite e punha-se um fresco desagradável...

Se a experiência me enriqueceu? Nem por isso! No final retive a violência do entretenimento, a mania antropocêntrica que temos, de julgarmos que todos os outros seres vivos podem e devem ser subjugados por nós humanos apenas para fins lúdicos. No entanto, retive também a exuberância e colorido das vestes tauromáquicas, o clamor e a entrega da assistência, a diversidade de caras, expressões, estereótipos presentes nas pessoas das bancadas, o rigor da estrutura e dos procedimentos dos cavaleiros, bandarilheiros e forcados, a elegância do toureio a pé, as fintas e caprichos dos cavalos, a música, o facto de o público ser soberano no julgamento da prestação dos "artistas".

Se entrei com frissom e saí com aficion? Acho que não, mas pelo menos penso que fiquei a perceber melhor o sentido da última, apesar de desconfiar que não voltarei tão cedo a estas "lides"!