Discografia

Ao descer a escadaria, uma montra com peixes multicoloridos dentro de diversos aquários; na loja ao lado, a diversidade de cores era outra: a montra exibia vários pares de sapatos bastante excêntricos e de cores berrantes; na retaguarda o alfaiate preparava os tecidos exuberantes com que elaborava os bubus e outros trajes africanos. Em frente, entre secador e aplicações de óleo de coco, uma cabeleireira praticava a sua melhor kizomba enquanto desfrisava a carapinha da cliente. A montra da loja do canto estava barricada por armários que não deixavam descortinar à primeira vista a actividade económica que ali se praticava; não obstante, raramente estava aberta e, quando tal acontecia era uma ténue fresta de 5 centímetros que nos deixava aperceber que estava gente no interior.
Fui lá ter por mera coincidência...certo dia andava a garimpar velharias na feira da ladra quando me deparo a vasculhar uns discos de vinil ao mesmo tempo que uma personagem bastante caricata. Acabámos por meter conversa e o tal sujeito, cinquentão-cabelo-a-dever-ao-pente-óculos-de-massa-colados-com-adesivo diz-me que conseguiu traçar o meu perfil de audiófilo e sabia muito bem o que é que eu andava à procura. Sussurrou-me que caso eu estivesse interessado ele vendia discos, verdadeiras raridades...mas só para alguns privilegiados. Indicou-me a localização “secreta” da sua loja e sugeriu que eu não divulgasse pois aquilo era um processo muito personalizado.
Obviamente apesar de tentar ignorar o lunático, acabei por não consegui resistir à tentação...passados uns dias lá fui à sub-sub-cave onde o pintas tinha o seu estabelecimento. Por entre pilhas e pilhas de discos que ocupavam o espaço formavam-se alguns estreitos corredores por onde podíamos caminhar... no fundo lá estava ele sentado num pequeno banco, de onde ia dando as directrizes para, no meio do caos, encontrarmos exactamente aquilo que pretendíamos ou que ele achava ser adequado para cada cliente.
“Tens menos de 200 discos? Se tiveres não digas nada a ninguém...é uma vergonha...” dizia-me ele constantemente. Ou ainda: “só vais gastar isso em discos? Há quem gaste aqui todos os dias aquilo que tu gastas por mês” . Era irritante...cada vez que ele falava apetecia-me mesmo destruir-lhe o imobilizado corpóreo...deixar-lhe aquela focinheira igual a um disco bem riscado...mas controlava-me...nada podia fazer...De facto o indivíduo era intratável...arrogante e irónico...mas tratava-se de uma simbiose...eu queria os discos dele / ele queria o meu dinheiro.
Com o tempo fomo-nos entendendo, ao ponto de eu começar a levar alguns discos recomendados por ele...sem ter nenhuma ideia prévia do que estava a adquirir. Geralmente ele achava que eu ia gostar e acertava...gerou-se assim alguma confiança. Aprendi a conviver com a criatura...e até comecei a apreciar a sua prolixa e enciclopédica cultura musical...o homem sabia tudo: títulos dos discos, das músicas de cada disco, ano de gravação, editora, produtores, todos os músicos que participaram em cada disco, e todas as histórias e tricas pop-rock... assombroso! Tudo começava a correr bem, até que cometi o erro de convidar a Eva Luna a ir lá comigo (foi arrastada é claro). A dita cuja ficou muito chocada com a degradação do espaço...vejam lá...para ela aquele “antro” não correspondia de todo à imagem por mim criada ao longo de meses. De repente começou a criticar as minhas escolhas (por ex. a compra de vários discos indianos...pérolas originais dos anos 50/60 do Ravi Shankar, Zakir Hussain, etc)...mais ainda: diz que eu é que andava a sustentar aquela espelunca, que o que eu gastava em discos dava para o cromo pagar a renda... como se não bastasse, começa a perguntar por discos foleiríssimos... com capas inacreditáveis... peças execráveis da história da música...eu nem queria acreditar...todo o trabalho que levei meses a construir...tudo arruinado...desde aí, nunca mais comprei discos nem tive coragem de lá voltar...estava já manchado pela vergonha...já apenas uma mera sombra do potencial coleccionador que outrora fui!

Os preferidos da Eva Luna:


Comentários

Pedro Ventura disse…
Coitada da Eva Luna. Tu é que te metes com gente maluca e ela agora é que paga as favas. Ela só estava a pensar na vida comum. Ela dizia que o dinheiro que gastavas com o man dava para pagar a renda da espelunca mas no fundo o que ela queria dizer era que esse dinheirinho que gastavas com o lunático dava para fazer uma viagenzita. heh Era para teu bem ò Ême. Ainda te tornavas um adicto e estoiravas lá o ordenado e depois o frigorifico ficava ás moscas. heh É caso para dizer que foi bom enquanto durou. ehhe Ainda conseguiste algumas pérolas.

Abraços
blimunda disse…
coitada da eva luna..
Anónimo disse…
Verso fácil e profundo; visitem

http://laboratorius.blogspot.com

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